13 de novembro de 2009

Heranças medieváis na Igreja

A Idade Média acabou há muito tempo. Isto é o que pensamos, o que dizemos. Quando pensamos em Idade Média imaginamos um mundo escuro, cheio de pessoas ignorantes, supersticiosas, um mundo onde as leis eram ditadas pela Igreja Católica, e o mundo era "cristão", porque o mundo era Europa.
Em muitos aspectos a Idade Média acabou de verdade. Mas dentro das nossas igrejas insistimos em conservar muitas coisas que desde esta época aprisionam o ser humano, fazendo-o ser, literalmente, uma "ovelha", na mão do seu pastor. Algumas são tão ridículas que se as pessoas parassem para pensar um pouco se revoltariam. Mas geralmente todo mundo se submete. Afinal, é da vontade de Deus que as coisas sejam desta maneira. E aqui é onde começam as heranças medieváis:
1. Qualquer regra de conduta é legitimada na vontade de Deus. Isto era feito pela Igreja Católica na Idade Média, e continua sendo feito por cada pastor em cada igreja. Eu tenho que ler a Bíblia porque é vontade de Deus. Eu não posso ir dançar porque Deus não gosta disso. Assim, além das pessoas ser alienadas e amedrontadas (contra a vontade de Deus, o que podemos fazer?), elas nunca vão a aprender a ser donas dos seus próprios atos, de afrontar as consequências de suas próprias escolhas. Elas vão fazer-não fazer por medo do castigo "divino".
2. A deificação do sacerdote-pastor ou o que seja. Agora são até bispos primazes, apóstolos, títulos que demonstram que o ser humano não saiu da coleira. A maioria de igrejas tem o seu pastor ou líder no patamar dos santos. Seja pelo impedimento de chamá-lo pelo nome, seja pela adoração descarada, as massas estão sendo levadas, ou melhor, já estão acostumadas, a ver no pastor a representação de Deus. Ele é o "servo de Deus", o que lhe dá direito a ser infalível. Sua palavra é lei (mesmo em algumas igrejas batistas, pelo que deveriam ser democráticas, quem faz o que quer é o pastor... e se alguém não gostar pode mesmo é ir embora!!), sua pregação revelação divina, não é possível questioná-lo... afinal, ele é um santo, e sabe mais do que a gente, então o que ele diz está certo. E assim, dia após dia muitas abobrinhas são lançadas sobre os fiéis (nem todos os pastores são ruins, mas há uns que misericórdia! E lastimavelmente eu tenho conhecido muitos dos últimos...). Ahhh, o povo da igreja, somos fiéis, não de Deus, mas do pastor. Olha só, e somos ensinados a obedecer, abaixar a cabeça como boas ovelhinhas, porque, você sabe, Deus não gosta de rebelião...
3. A demonização do outro. Isto vem mesmo desde antes da Idade Média, vem desde o regime sacerdotal pós-exílico, que se abrogou o direito de ser dono da verdade absoluta. Se eu estou certo, o outro está errado, é ou não é? Pois é, e até hoje quem não comparte o que eu penso, quem não aceita a minha verdade, é o pagão, o errado, o filho do diabo... aquele que me contamina se fico por perto dele. E pensar que esta mentalidade legitimou as massacres da colonização, que os povos nativos destas terras foram assassinados em nome de uma verdade absoluta revelada por um "Deus absoluto"... e o cristianismo, desde a sua origem, se fez com sangue! Hoje não matamos, mas desprezamos, discriminamos, olhamos com cara de "tadinho dele vai pro inferno", rejeitamos e às vezes até humilhamos. E dizemos ainda por cima que Cristo amou o mundo... só que, para nós, esse mundo somos nós mesmos! Que lindo, Deus nos ama, o resto que se ferre, eles não acreditam na minha verdade, merecem ser condenados! E depois colocamos a culpa na maldade do mundo pelas injustiças, guerras e ódios, todos fruto de um preconceito que não ve o outro como um igual, mas como um objeto: de conquista (missionária: o outro é objeto de conquista porque deve 'ser convertido', ele não interessa de outro jeito, só esse), de compaixão pela sua "tolice", de desprezo. E ainda estamos dispostos, mesmo disfarçadamente, a queimar em fogueiras quem for diferente de nós.
4. A depreciação da mulher. Depois de 2000 anos, depois da chegada da modernidade, dos direitos, da igualdade, ainda temos o descaro de tratar a mulher como prato de segunda mão. Ela pode, sim, trabalhar na igreja. Mas olha, só pode ser missionária... educadora religiosa... dar aula na EBD... ahhh, e a mulher do pastor é o substituto voluntário (ou forçado?) do pastor. Ela tem que estar onde se precise, não pode deixar de liderar a MCA, os jovens, as crianças, a EBD... ahhh! mas se a mulher ousar pensar em chegar a ser pastora, ou algum outro título semelhante, ai va a igreja medieval, com a Bíblia em mão, para dizer que "Deus não gosta disso". Claro, Deus não gosta se eu não gosto. E o homem é ciumento com seus títulos. Sinceramente eu não sei se poderia ser pastora, se aguentaria tudo o que esse cargo significa. Mas negar à mulher o direito de fazer o que ela quer fazer é a coisa mais retrógrada do mundo.
Além dos cargos dentro da igreja, a mulher ainda é banida, o seu corpo ainda não foi aceito pela sociedade. O curioso é que a negação do corpo da mulher foi acentuado, sim, desde o início da tradição, com o safado de Tertuliano colocando a culpa em nós pelo pecado, e com Agostinho, que para mim não tinha se resolvido totalmente... mas de forma teórica, porque se podem ver gravuras onde os vestidos medievais não tinham nada de discreto, pelo menos em questão de decotes... pero a era vitoriana tampou a mulher de cabeça a pés. O protestantismo tirou de nós uma das poucas coisas que tinhamos.
Engraçado, numa sociedade como a brasileira, onde o que mais se vê são corpos de mulheres nuas ou seminuas... mas elas não são mulheres, elas são objetos, coisas que despertam o desejo masculino, a cobiça masculina, mas nunca o respeito masculino. E por isso, as castigadas somos nós. Isto é, o cara não consegue olhar uma mulher sem respeitar sua integridade, sem controlar sua lascívia, e por isso nós devemos nos cobrir até os olhos. Criticamos a burka mas não aceitamos blusas de alcinha. Claro, os ombros são atraentes, e os homens podem ser seduzidos... fala sério! O homem que aprenda a controlar seu corpo e sua mente, que eu tenho o direito de me vestir como melhor me sinta! (porém, é necessário atender aos limites do vulgar... porque uma coisa é liberdade e outra libertinagem, e andar por ai peladona porque me sinto a vontade também já não da). Quem pensou, num calor de 40 graus, usar camisa de manga porque a alcinha "é do diabo"?
5. Sexo é tabu. Ainda. O corpo é algo que deve ser ocultado, esquecido, ele é mau, nos leva ao pecado... devemos procurar ser anjinhos, escapar da carnalidade deste corpo maldito... corpo que, por incrível que pareça, Deus fez! Deus fez a gente com sexo, Deus fez as nossas formas, as nossas características, o que achamos atraente no outro, o que vemos e o que ocultamos. Se Deus nos fez, porque estamos seguindo ainda Platão, e sua demonização do corpo? (O corpo é o cárcere da alma, ele é mau, a alma boa). Eu prefiro pensar que se Deus nos fez, e como nos fez, foi por algo. Devemos tirar o corpo da sua punição imerecida! Devemos cuidar de nós mesmos, amar-nos, e sobretudo aceitar como somos, homens e mulheres de carne, sujeitos à materia. Se não, Deus teria feito um monte de espectros para povoar o mundo, sem corpo... se ele nos fez com corpo, não é para negá-lo!
6. O conceito de pecado. Este foi a ferramenta mais eficaz para manipulação de massas na Idade Média, porque o sacerdote era o único caminho para obter o perdão dos pecados. Agora dizemos que vivemos sob a graça. Mas que graça é essa que exclui as pessoas da comunhão porque estão "em pecado", um pecado muitas vezes ditado pela cabeça do líder? Já ouvi falar que ir ao cinema era pecado... pera aí, o pecado prescribe? Se era tem que ser agora, ou então nunca foi pecado. Essa questão de pecado ainda não deixou de ser ferramenta de manipulação. Cada um diz que isto ou aquilo é pecado, e as pessoas são ensinadas a viver com medo do próximo respiro, porque podem "pecar", e Deus fica chateado com elas. Eu não sei mais se Deus se importa tanto com as coias que dizem que é pecado fazer. Se for pecado dançar, Deus foi muito injusto comigo me colocando para nascer num pais que se mexe ao ritmo da cumbia, da salsa, do merengue e do vallenato. A dança está no meu sangue, e prefiro "pecar" feliz a reprimir meus passos (que também não são lá a grande coisa) por um pecado que, pelo que tenho percebido, não é mais que herança cultural. Assim como as roupas, herdamos dos colonizadores estadounidenses (no caso dos batistas, pelo menos dos que conheço) uma demonização da cultura na qual eles deviam ser os estranhos, mas da qual fomos extirpados como sem perceber. E assim, dançar é ruim, se vestir conforme ao clima tropical é ruim, dependendo do credo beber é ruim... e se volta à alienação, que não ensina às pessoas que se bebem muito podem estragar o corpo, ou se fumarem demais vão ter câncer de pulmão... é mais fácil dizer que é pecado, que ai o medo da condenação eterna as vai mater longe de tudo o que se queira (o que aqueles, que sabem um pouco mais, querem).
7. A doutrinação automática dos "crentes". Já na Idade Média as pessoas eram ensinadas a aprender sem questionar. O que eles aprendiam, as doutrinas, era revelação de Deus (uma revelaçao manipulada, disfarce de poder político e econômico), e por isso mesmo não era para pensar, era para aceitar. E nas nossas igrejas estamos assim, ainda enfiando "conhecimentos" nas cabeças das ovelhas (tadinhas, muitas vezes "ovelhas" mesmo...), e elas aceitam sem questionar, obedecem sem protestar, acreditam sem pensar. E o que nós sabemos, não, eles não podem saber, não estão preparados. E seguem assim, num mundo de fantasia, sem indagar pelo Deus da vida delas, aceitando a versão de Deus que cada pastor dá, que cada denominação ou liderança dá. Porque, isso sim, cada igreja tem sua própria versão de "Deus". Muitas coisas que se poderiam ensinar, coisas simples, como a formação da Bíblia, como a autoria e a originalidade dos textos sagrados, são ocultados, como se saber que muito provavelmente Jonas nunca foi comido por peixe nenhum abalasse a fé em Deus. Ou, talvez seja por isso mesmo, porque o "Deus" que é ensinado não bate com um Deus recontado em diversas histórias, construido em diversas tradições. O "Deus" que aprendemos é imutável, inefável, imóvel. E o Deus dos hebreus era tudo menos isso. E o nosso Deus, nem temos um, só seguimos o Deus dos outros, o Deus que nos contaram como era. E ai vamos, igreja medieval em um mundo pós-moderno, imperfeito, que cada dia está pior. E ficamos brigando pela nossa verdade, obrigando os outros a nos ouvir (quantas vezes passei nas praças onde sujeitos pregam ou cantam, com todo o fôlego, sem pensar que talvez isso, em lugar de ser testemunho do amor de Deus, é fastídio para quem passa ou vive, trabalha ou fica ali). E distorcemos a verdade do evangelho, a simplicidade de Jesus, em meio de um monte de normas, dogmas (e se você não tomar a Santa Ceia... não vai ficar em comunhão com Deus nem com os outros), regras, proibições.

E depois nos queixamos pelo sucesso obtido pelas "igrejas" manipuladoras que oferecem um Deus-boneco (ele TEM que fazer o que eu quero). Se não ensinamos as pessoas a pensar, a questionar o que se lhes fala, tudo que tenha o título de Deus é sagrado!
Jesus nos disse para amar ao próximo como a nós mesmos. Ele não especificou a religião, cor, sexo ou idade desse próximo. Só disse para amar. E esse amor não é aquele da boca para fora, tão comum e desgastado pelos "crentes" que saem repartindo "amor" por ai, falando a todo mundo que "Deus te ama". Sim, isso é verdade. Mas também é verdade o que disse Tiago, que se digo ao meu irmão que Deus o ama, mas não faço nada para suprir sua necessidade, para mostrar mesmo na pele o amor de Deus, não estou fazendo nada. Falar é, afinal, muito fácil. Cadê as ações? Cadê o compromisso com um Deus que morreu para dar vida ao mundo? Cada vez mais estamos mandando o mundo à morte, omitindo nossa responsabilidade na construção de um futuro, de um mundo melhor. Afinal, este mundo é máu. O homem é uma massa danada, condenado desde o início. Afinal, nosso lugar não é aqui, é lá no céu. Por isso estamos como estamos, porque se deixassemos de olhar tanto para o céu e olhassemos mesmo para quem está do meu lado, enxergariamos as verdadeiras dores, as verdadeiras injustiças, e o sangue ferveria nas veias, e nos levantariamos para fazer alguma coisa. Mas como este mundo não importa...
E ficamos presos, cativos na Idade Média, fechando os olhos e os ouvidos, os nossos e os dos outros, a fim de que a tradição seja continuada, a fim de que a hierarquia seja mantida. A fim de que a massa continue dominada, mansas ovelhinhas no rebanho do "pastor". Ai de nós, que temos tão grande responsabilidade pela ignorância e desespero dos outros!
P.S. Muitos pastores são servos sinceros de Deus. Muitos são ignorantes sinceros. Mas, lastimavelmente, a grande maioria são sinceramente safados, sinceramente políticos, sinceramente manipuladores (talvez minha visão seja muito sinistra, mas tenho experimentado isso na pele...). Queira Deus que surjam mais pessoas que enxerguem o mundo de verdade, o exemplo real que Jesus nos deu, e sigamos verdadeiramente os passos daquele que denunciou as injustiças, enfrentou aqueles que tinham o poder, e que morreu pela verdade!

12 de novembro de 2009

As Crônicas de Nárnia e teologia

As Crônicas de Nárnia são um livro (ou melhor, uns livros) maravilhoso(s). São livros que, mesmo escritos para a compreensão de uma criança, falam profundamente aos corações de todos. Sua mensagem é mais profunda do que um simples conto de fadas para crianças. Nestes livros C.S. Lewis conseguiu traduzir, numa linguagem simples e belísima, tudo o que para ele era importante. Sobretudo a sua experiência de Deus.

Em cada um dos livros C.S. Lewis mostra um aspecto de Jesus. O primeiro narra a criação de Nárnia. Também narra a compreensão que Deus tem de nossas dores. Os dois protagonistas são aventureiros através de vários mundos, e conhecem assim a feiticeira que mais tarde vai assolar Nárnia, e também Aslam, o Grande Leão, no dia em que ele cria Nárnia. A parte mais bela, para mim, é a da criação. O autor descreve tudo com tanta eficiência que parece que a gente está lá no meio do nada, vendo o sol, surgir e os bichos pipocando da terra. É muito belo. E a música que Aslam canta é um modo de expressar as coisas que não tem comparação. Dá vontade de que fosse verdade tudo.

Uma das coisas mais interessantes no livro é que ele não é doutrinário. Ele é uma história mesmo, onde Lewis da vida ao que ele mais ama: Deuses e deusas gregos, faunos, dríades, anões, centauros, unicórnios, e sobretudo, animais falantes e uma natureza belísima, os quais convivem todos em harmonia (todos sendo súbditos de Aslam). Quando algo vai mal em Nárnia a relação harmónica entre estes seres e seu entorno natural é rompido, quando as coisas são ruins árvores são cortadas, rios são deixados de ver como algo bom, a floresta é tida como cheia de fantasmas por homens que não amam o seu entorno. Isto é importante num mundo onde o homem esqueceu que não é o dono e senhor, e que há muitas criaturas que compartem o planeta conosco, dependem da água, da floresta, do ar para viver. Coisas que, pouco a pouco, lhes estão sendo roubadas. Isto quando não lhes são roubadas as próprias vidas.

O que é mais impactante é a claridade do texto, pelo menos para quem é cristão ou conhece um pouco de Deus (sempre me perguntei como os não cristãos lêm o livro, como eles o interpretam. Talvez só vejam o conto de fadas. Espero que não). Você pode ver claramente o que C.S. Lewis pensava de Deus, o que era Deus para ele. Como já disse, cada livro mostra um aspecto diferente de Jesus. O segundo livro, que foi convertido em filme recentemente, mostra o Jesus que deu a sua vida por nós. No livro, Aslam dá sua vida pelo menino traidor. Mas na morte obtém a vitória. O terceiro livro mostra a atuação de Aslam em todos os momentos da vida de um menino chamado Shasta, apesar de que ele se sinta só ou esteja passando por dificuldades, Aslam está sempre perto dele. O quarto livro, que também virou filme, mostra a potência do chamado de Aslam. A menina, Lúcia, deve seguir o Leão, sem importar o que os outros pensem. Ainda quando eles não são capazes de ver o entender o que ela vê e entende, e ainda que os outros zoem ou a tomem por louca. Isto tem várias mensagens para os cristãos desanimados do seu caminho, muitas vezes solitário, como seguidores de Cristo. O quinto livro tem o final mais lindo que se possa imaginar. Depois de uma viagem fantástica no mar, até chegar ao Fim do Mundo, passando pela correção do caráter malcriado de um menino chamado Eustáquio, o qual é curado (porque virou dragão) só quando Aslam faz um tratamento com ele (depois do menino ter tentado, inúmeras vezes, sozinho), os protagonistas chegam a um lugar onde vem um cordeiro. Para nós, cristãos, é evidente de quem se trata. Este cordeiro vira Aslam, e diz aos meninos que eles devem procurá-lo e conhecê-lo pelo próprio nome no seu próprio mundo. Este final é tão expressivo!

O sexto livro fala da importância de seguir as instruções de Aslam (Jesus). Numa parte com muito significado, que revela o que Lewis falava aos críticos, diz que as palavras (umas palavras antigas, entalhadas na escadaria de uma cidade em ruínas), mesmo que tenham sido escritas há muito tempo e em outro contexto, se referiam exatamente ao que os meninos tinham que fazer (eles estavam procurando um príncipe perdido, preso embaixo das ruinas. As palavras eram parte de um poema, e só tinham restado estas: DEBAIXO DE MIM). Isto fala muito a quem diz que a Bíblia não tem mais valor, que é só um livro velho...

O sétimo livro é o mais triste. E ao mesmo tempo alegre. Ele narra o fim de Nárnia. Aqui todos os protagonistas dos livros anteriores se reúnem, todos menos uma, e assistem ao fim de Nárnia através de uma porta. Nárnia é destruida, as estrelas caem, o sol e a lua se fundem e são apagados para sempre pelo Pai Tempo, bichos enormes destroçam as florestas e acabam com tudo o que nelas existia. Tudo a uma ordem de Aslam. E o mais impressionante é a entrada de todos os seres de Nárnia pela porta. Uns amam a Aslam, e vão junto com os protagonistas. Outros o odeiam (tudo com o olhar), deixam de ser bichos falantes e somem na escuridão da sombra do Leão. Este último conto mostra a visão do mundo que tinha Lewis. Eu não concordo muito com ela, mas é magistral o modo como ele descreve tudo. Ele é platônico. Para ele o mundo de Nárnia que acabou era só sombra da Nárnia real, que é aonde se encaminham todos os seres que amam Aslam. Um lugar maravilhoso, igual à Nárnia antiga, mas muito mais "real", mais "vívido". Para quem quiser ler estes livros maravilhosos não vou estragar o final, só digo que tem uma surpresa inesperada no final, chocante mas maravilhosa, criadora de esperança.

Outra coisa interessante neste último livro é o encontro de Aslam com o calormano Emeth, que toda a vida procuro achar o seu deus, Tash, um bicho fedorento e horrível. Aslam diz a ele que o que ele procurou foi a ele mesmo, a Aslam, porque não se pode fazer o bem em nome de Tash. E diz ainda que muitos fazem o mal em nome de Aslam, mas é a Tash a quem servem. Coisa muito verdadeira em um mundo como o nosso, onde tantas vezes pessoas mataram e cometeram todo tipo de iniquidades em nome de Deus. Mas não era a Deus a quem serviam. E ainda, mostra um mundo onde as pessoas deixam de acreditar em Aslam. O macaco, que aparece no início do livro, se finge Aslam, e começa a destruir Nárnia, vendendo-a aos calormanos. Os animaizinhos da floresta, esquecidos das histórias de Aslam e de como ele é, pensam que ele de verdade é portavoz de Aslam e obedecem, sendo manipulados. Mais uma coisa que cai como luva para o nosso mundo, onde 0 evangelho deixou de ser verdade e passou a ser manipulação.

Assim, estes livros, de uma forma tão linda que dá vontade de chorar às vezes, mostra tudo o que era, na conceição de Lewis, o caráter de Jesus, com o nome de Aslam. E isto é o mais belo que estes livros tem, já que muitas vezes Jesus é tão afastado da gente, tão posto "lá no alto do céu", em um lugar tão inatingível, que as pessoas não o conhecem como o Deus que ama. E, nos seus livros, Lewis consegue isto. De uma forma simples ele consegue pôr Jesus pertinho, e nos faz sentir amados, mesmo quando erramos, nos faz sentir que de verdade Deus está conosco. E da vontade de estar em Nárnia, e poder abraçar, junto com os protagonistas, o Grande Leão.

É um livro que fala ao coração, enquanto fala à imaginação. Ensina, sem ser chato. Diverte, recreia, maravilha o leitor. É um livro onde a teologia se revela na sua forma mais simples, a teologia pessoal de um homem com seu Deus, posta no papel. Um livro, finalmente, onde se pode aprender muito sobre Deus, de uma forma que em muitos aspectos chega a ser mais eficiente e formosa do que os tradicionais métodos de "discipulado" ou "evangelização".

Este livro é um dos mais belos que já li na minha vida. Espero que para vocês seja, igualmente, um livro interessante.

6 de novembro de 2009

Mundo encantado

A sociedade em que vivemos é uma sociedade fetichista. Isso eu já sabia, só não sabia o nome. Fetichista. Essa palavra vem do português "feitiço". Assim, a sociedade nos enfeitiça. Como? Com um instrumento mágico: a mídia. Porque? Para viver fora da nossa realidade.
Eu não quero falar aqui de desligar computadores e jogar televisões pela janela. Também não estou querendo voltar à era da pedra. Só quero chamar a atenção da nossa consciência, tantas vezes adormecida.

O mundo em que vivemos é um mundo de sonhos. Em cada loja de eletrônicos podemos adquirir um novo jogo de play station, para virar reis ou príncipes procurando tesouros, matando monstros, criando civilizações. Até há jogos para ter uma vida normal, com cachorros e filhos. Só que no jogo podemos evadir as nossas realidades, os problemas se solucionam com um click. Na internet viajamos por sites do mundo todo, fazemos amigos sem sair de casa, jogamos, compramos. A internet é uma ferramenta útil para a comunicação e para aprender. O problema surge quando deixamos de lado a vida real para passar cada vez mais tempo frente à tela. Dia após dia estamos virando virtuais. Nossa vida está deixando de ser real. Os amigos que temos são perfis de sites da internet. Ou quadradinhos à esquerda da tela, quando falamos pelo msn. Na internet podemos ser quem quisermos, esquecendo nossas vidinhas chatas. Nos livramos da nossa realidade.

Mas além da internet, além dos jogos, a caixinha de encantos preferida de todos é a televisão. Pode ser grande ou pequena, de tela plana, de plasma. O importante é ter uma. Ontem aprendi que a imagem que vemos na televisão nunca é completa. A tela emite na realidade linhas, que se sucedem em 3.3 segundos. A imagem é completada no cérebro. O que isto tem a ver? Tem a ver que o esforço que o cérebro faz para completar as imagens uma após a outra é muito grande. Tanto que ele fica ocupado nisso, e a parte reflexiva dele fica "desligada". De modo que engolimos imagens e imagens sem ter tempo para refletir sobre elas. Como isto nos afeta?

Depois de 50 minutos assistindo TV o cérebro está funcionando no automático. Rolamos em uma "inconsciência" absorvente.

Além da parte "técnica" do negócio, temos o conteúdo da TV. Cores brilhantes. Musicas, histórias cativantes. Tudo muito bonito. E sobretudo, mágico. Na televisão tudo pode acontecer. Os sonhos são realidade. As escovas de dentes falam, os carros andam sós, ou viram robôs, é possível ganhar casas com "uma raspadinha". E nós ficamos envolvidos pelo encanto. O fetiche faz efeito. A TV é mestra em tirar-nos da própria realidade. Quando assistimos novelas vemos que tudo sai bem, que os máus vão à cadeia, que os pobres tem carros chiques e terminam ricos. E o encanto não acaba ai. Desenvolvemos rituais. A TV é, para alguns, uma espécie de religião. Não tem como deixar de ver a novela, porque é terrível. Não posso ir nem ao banheiro, está passando o programa que eu mais gosto...

No meio de tudo, esquecemos de nossos problemas. Até no jornal que mostra os horrores da vida diária, tudo parece ficção. As tragédias viram espetáculo, e deixam de nos importar. Tanto, é uma entre tantas... o que importa é o show.

Uma das coisas que de verdade odeio na TV, e acho que não deveria existir, é a denominada "programação evangélica". É falsa. De evangélica não tem nada. O que se vê é mais um feitiço. Milhares de pessoas comprando "óleos da unção", rosas mágicas, sabonetes que tiram pecados, que vão aos "templos" para que as toalhas com que tomam banho sejam "abençoadas, claro, pagando um pequeno preço antes... e não percebem que estão sendo manipuladas. O que era sagrado virou palavras vazias na boca de muitos, Deus é mais uma das mercadorias oferecidas em ditos programas, feitos por pessoas que, na sua maioria, o único que pretendem é encher o bolso às custas da ignorância dos outros. E estes outros, presos nos seus problemas, cheios de dificuldades, vêm nestes programas enganosos a única solução a tanto sofrimento. Só que:

1. A mensagem é errada. O sofrimento faz parte da vida humana, uma vida sem sofrimento não existe.

2. Os "pregadores" falam em bênçãos e prosperidade, como se Deus nos estivesse devendo alguma coisa. Para alcançar estas "bênçãos" devemos ter "fé" (e pagar o dízimo ou ser patrocinador, é claro). Só que esta fé não é nem sequer posta em Deus, mas nos objetos mágicos que os enganadores oferecem, desde martelos sagrados até canetas da prosperidade, passando por águas, pedras, alianças, e tudo o mais absurdo que se possa imaginar. Mais absurdo e desconcertante é ver que as pessoas acreditam em tudo isso.

3. As tais bênçãos e milagres são paliativos, e causam um mal maior do que o bem. Porque a pessoa acha que vai la, ou assiste o tal programa na esperança de ter seus problemas resolvidos para sempre. Só que novos problemas vão surgir. A vida não é tão simples assim e os óleos milagrosos não resolvem todas as complicações do dia-a-dia. E ai, ou a pessoa vai comprar outra peça mágica para enfrentar o novo problema, ou então vai deixar de acreditar. E como os enganadores estão oferecendo toda essa magia em nome de Deus, elas não deixam de acreditar nos safados que as enganaram, mas em Deus.

4. Em fim, os "pregadores" fazem uso de teologias (se se pode chamar a isso de teologia) simples e mal feitas, e quando se encontram sem palavras para solucionar de verdade um problema, colocam a culpa no ouvinte/assistente. Isto eu vi com meus olhos e ouvi com meus ouvidos. E fiquei em choque. Num desses programas da tarde, repetido em dois ou três canais por essas horas, eu vi um pedaço do programa, no qual os fiéis escrevem ao"missionário" para que ele os ajude a resolver os problemas. Bom, a mulher escreveu que o seu filho a maltratava, que estava sofrendo muito. O que fazer? Resposta do "missionário": Você não é uma autêntica cristã, não conhece o Deus que diz conhecer, porque se o conhecesse não sofreria. Você tem que se arrepender(!) e procurar Deus e "tomar posse da bênção" (aqui ele começou a recitar versículos bíblicos sem nexo um com o outro, todos fora do contexto).

É absurdo. Eles são tão descarados que nem importa ajudar os outros. A mulher sofrendo, desesperada, recebe uma resposta que a deixa mais sem moral ainda, afundando-a mais no poço. Se não tem resposta fácil, então não tem como ajudar. A culpa é dos outros.

Este sistema macabro de manipulação encanta milhares de seres, já enfeitiçados no dia-a-dia com todas as outras coisas que se passam na TV e que acontecem ao seu redor. A sociedade em que vivemos é experta em maquilar os problemas, em ocultar a realidade. Vivemos num mundo onde cada vez mais pessoas estão sendo convertidas em fantoches, alheias ao que lhes sucede, incapazes de reagir contra as situações adversas. E agora, para uma maior alienação, embebidos de magia barata, de remédios falsos, caros, vazios. Porque o "anel da prosperidade" tem seu preço. E não é pouco. São roubadas as vidas, as esperanças das pessoas. E pior ainda, lhes é roubada a oportunidade de conhecer o Deus real, que as ama e sustenta no meio da mais cruel dor.

E nós, cristãos, o que estamos fazendo? Nós que conhecemos mais da Palavra, que vivemos, muitas vezes, num contexto de ritualismo sem sentido, devemos deixar o feitiço! Devemos abrir os olhos, e ver as pessoas que estão sendo presas por este sistema falso e opressor! Não devemos deixar que a alienação tome conta também de nós, fazendo-nos seres apáticos, sem forças nem vontade de nos opor ao sistema dominante. Se as pessoas estão sendo enganadas pelos truques mágicos que aparecem a todo momento na Tv (como passar o palitó em cima de uma fila de "endemoninhados" e outras besteiras do tipo) é também pelo nosso letargo. Se nós sabemos, devemos ensinar. O único caminho para que as pessoas deixem de ser ignorantes é que elas aprendam! E se nós não lhes ensinamos, quem o fará? Os magos-pastores da TV? A sociedade fetichista?

5 de novembro de 2009

Pele e dor

Um gemido. Só um. Tímido, quase sem força. Um pequeno animal está sendo torturado, sua pele arrancada do seu corpo indefeso e fraturado enquanto ele ainda está vivo. Ainda está consciente. Só um gemido, no início da tortura. Gemido que expressa a dor, a surpresa. Por que? O que eu fiz? E sua pele é puxada, arrancada sem misericordia, enquanto só seus olhos expressam a dor profunda. Depois, o pequeno bichinho é largado na terra a morrer. Tenta se levantar, mas não consegue. Como, quem conseguiria? Está sem pele! Vivo! Ainda tentando andar!

Eu vi estas imagens chocantes ontem, e até hoje estou aterrorizada. Pasmada. Como pode alguém, que diz se chamar ser humano, fazer algo assim? Como pode "isso" (não tenho mais vontade de falar de "alguém") infligir uma dor assim a um ser inocente? Por que? Não tenho palavras suficientes para expressar minha dor e indignação. Não palavras "decentes", pelo menos.

O ser humano é a única criatura terrestre que se distingue pela sofisticação da sua crueldade (Se é possível falar em crueldade sofisticada...). Cada vez mais há métodos piores de tortura, cada vez mais a dor do outro é ignorada. Quem é capaz de erguer sua porca mão para machucar desse jeito um animal que nunca teve a chance de se defender, não tem o direito de ser chamado de humano. Se assim age contra uma criatura indefesa, que nem pode falar para se defender, quanto mais cruelmente agirá contra seu próximo! Quem é cruel com um ser vivo é cruel com todos.

E a indústria esconde isto. A moda não fala ao respeito. O que importa é aquelas mulheres bonitas, elegantes, vestidas de peles finas, exibindo o fruto da dor de outros. Da morte de outros. Para fazer um sobretudo são necessárias 100 mortes. 100 chinchilas que morrem para satisfazer a vaidade de uma só pessoa. Claro, o importante é exibir a "elegância" no tapete vermelho, ou nas capas das revistas.

É mais do que indústria. Chega ao fundo dos valores humanos, do que é ser humano. Os animais matam para comer. Eles caçam, eles capturam suas presas. Mas é questão de sobre vivência. E o ser "humano"? Ele come carne. Tudo bem. Mas ele é um ser que se chama a si mesmo de racional, um ser que pensa, e que assim mesmo não consegue se desprender de velhos hábitos. Como se ainda precisássemos de peles para nos vestir. E mais do que isso. Por que, para tirar essas peles, o animal é tratado desse jeito? Por que tem que sentir sua pele sendo arrancada? Ao ver essas imagens da vontade (nada cristã, confesso) de ver essas mesmas pessoas sofrendo essa mesma tortura. Ai iam saber o que é dor.

Mas de nada adiantaria torturar os torturadores. Não resolveria o problema. Outros se levantariam e continuariam, porque a indústria demanda. O comércio pouco se importa com sentimentos ou dores, ou mesmo com a vida. Se importa com o dinheiro. Como ele chega aos bolsos não é coisa que importe. Cadê o respeito à vida? Cadê o ser humano integrado com a natureza? Todos somos moradores do mesmo quintal! Todos somos habitantes da Terra, usamos ela, precisamos dela para viver. Tanto plantas, como animais, como seres humanos, precisamos de ar, de água, de dormir, de comer. Todos nos reproduzimos sexualmente (as plantas são macho e fêmea também). Todos sentimos dor. Se alguém puxa o meu cabelo eu vou sentir dor. Imaginem então alguém puxando sua pele, cortando seus pulsos e seus tornozelos e puxando a pele, tirando seu couro cabeludo, a pele da barriga, o pescoço. Isso é o que fazem com estes animais, depois de ter eles vivido o tempo inteiro dentro de uma pequena gaiola suja e fedida, sem espaço suficiente para se mexer. Antes da dor suprema, para atordoá-los um pouco eles são lançados a chão como sacos de batatas, sofrendo fraturas e contusões.

Me pergunto: isso é coisa que alguém que vive proclamando sua civilização faça? E ai vem a resposta: claro! Se nem aos iguais eles respeitam, muito menos a um animal que, aos olhos deles, é uma coisa!

O ser humano está cada vez mais imune à dor. Claro, quando é a dor dos outros. Se não sinto na pele o que o outro está sentindo, então está tudo bem. É absurdo ver quem defende a indústria das peles falando em favor desta. Bom, não concordo também com lançar pintura nos abrigos de quem usa peles. Isso só vai fazer que matem mais animais para fazer novos abrigos, porque esse ai já estará arruinado. Mas é necessário fazer alguima coisa. Devemos ver o que estamos fazendo. O homem está deixando a sua humanidade. O ser humano compreende o respeito à dignidade do outro, a solidariedade com o outro. Esse outro é tanto o próprio ser humano quanto a natureza, os animais, as plantas. Todo o que nos rodeia. Muitaz vezes nos deixamos seduzir pelo feitiço da sociedade consumista, que oculta de nós a realidade. Vemos nas vitrines das lojas coisas belas, mas não sabemos da cruel realidade da produção dessas "belezas". Vemos as crianças nas ruas, e nos consolamos dizendo que não é nossa culpa se elas estão ai. A culpa é dos bandidos, ou dos pais que largaram a criança à sua própria sorte.

Mas nós somos culpáveis. Quem compra um abrigo de pele está legitimando o modo como esta pele chegou a ser abrigo. Quem é indiferente à dor e as necessidades do outro está legitimando a ordem social estabelecida, como se tudo estivesse bem. E a dor está ai, nos olhos dos pequenos animais torturados, nos olhos das crianças jogadas na rua. Está no meio de nós, e nós não fazemos nada. A igreja se preocupa tanto com regras e "espiritualidade", e esquece do que de verdade importa. Deus nos pôs no mundo não como peregrinos esperando chegar ao céu. Nós temos uma missão, que atinge mais do que a "alma" (no sentido grego) das pessoas. A dor existe. O mondo geme. Homens e mulheres, crianças, animais, clamam por ajuda.

Aquele que se diz ser humano está acabando com o mundo. E quem não acaba com ele assiste ao espetáculo, impassível. Quando vamos a voltar ao plano original? Quando vamos a nos levantar contra esta "ordem" social horrorosa, que pisa sobre as criaturas mais indefesas da Terra? Igreja, tu que te dizes filha de Deus, protege a criação de Deus! Protege teu próximo, criação de Deus! Protege o teu entorno, criação de Deus indispensável para nós mesmos! Acordemos! Algo há de ser feito! Não pode haver mais deshumanização neste mundo! Cadê o coração das pessoas?